Notas sobre o direito à memória no ambiente digital e sua relação com os arquivos

 

Notes about the right to memory in the digital environment and its relationship with archives

 

Notas sobre el derecho a la memoria en el entorno digital y su relación con los archivos

 

 

Jaqueline Ribeiro Cabral

Departamento de Ciência da Informação (UFF)

Brasil

 

Igor Muniz Pereira

Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)

Brasil

 

 

 

 

Submetido em: 22/04/2021

Aceito em: 14/06/2021

Publicado em: 28/10/2021

 

Licença:

 

Autora para correspondência: Jaqueline Ribeiro Cabral

Email: jacquelinerc@id.uff.br

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4118-2088

 

Como citar este artigo:

CABRAL, Jacqueline Ribeiro; PEREIRA, Igor Muniz. Notas sobre o direito à memória no ambiente digital e sua relação com os arquivos. REBECIN, São Paulo, v. 8, edição especial, p. 01-11, 2021. DOI:  10.24208/rebecin.v8i.260

RESUMO

 

Aborda a relação entre o direito à memória e os documentos de arquivo. Recorre à psicologia para conceituar, em um primeiro momento, a memória como um fenômeno individual. Posteriormente, destaca-se a dimensão coletiva que assume ao ser discutida no campo da arquivologia. Apresenta situações nas quais os arquivos são utilizados com a finalidade de permitir o exercício do direito à memória, citando como exemplo o contexto da redemocratização após as ditaduras militares brasileira e argentina. Questiona as possibilidades de construção da memória no ambiente digital. Com o objetivo de investigar iniciativas que tratam dessa temática, conceitua o modelo OAIS, enfatizando as plataformas arquivísticas de descrição, difusão e acesso. É apresentado um estudo de caso de dois sites que se utilizam destas para construção da memória: Mercosur - Guía de Archivos Y Fondos Documentales; e Lesser Slave Lake IRC Treaty Aboriginal Rights. Por fim, reflete sobre a atuação de arquivistas e sua capacidade para lidar com os documentos diante da realidade digital.

 

Palavras-Chave: Direito à memória; Arquivos; Preservação digital; Difusão; Acesso.

 

ABSTRACT

 

Approach the relationship between the right to memory and archives. Resort to Psychology to conceptualize, at first, memory as an individual phenomenon. Next, highlights the collective dimension that it assumes when discussed in the Archivology field. Presents situations in which archives are used with the purpose of allowing the exercise of the right to memory, citing as examples the context of redemocratization after the Brazilian and Argentine military dictatorships. Questions the possibilities of building memory in the digital environment. With the objective of investigating initiatives that deal with this theme, conceptualizes the OAIS model, emphasizing the archival platforms of description, difussion and access. A case study of two sites that use these to build memory is presented: Mercosur - Guía de Archivos Y Fondos Documentales; and Lesser Slave Lake IRC Treaty Aboriginal Rights. Finally, reflects about the performance of the archivist and his ability to deal with documents in the face of digital reality.

 

Keywords: Right to memory; Archives; Digital preservation; Difussion; Access.

 

RESUMEN

 

Aborda la relación entre el derecho a la memoria y los documentos de archivo. Utiliza la psicología para conceptualizar, en un primer momento, la memoria como un fenómeno individual. Posteriormente, se destaca la dimensión colectiva que asume cuando se discute en el campo del archivo. Presenta situaciones en las que se utilizan archivos con el propósito de permitir el ejercicio del derecho a la memoria, citando como ejemplo el contexto de redemocratización posterior a las dictaduras militares de Brasil y Argentina. Cuestiona las posibilidades de construir memoria en el entorno digital. Con el objetivo de investigar iniciativas que abordan esta temática, conceptualiza el modelo OAIS, enfatizando las plataformas de archivo de descripción, difusión y acceso. Se presenta un caso de estudio de dos sitios que los utilizan para construir memoria: Mercosur - Guía de Archivos Y Fondos Documentales; y Derechos aborígenes del Tratado IRC de Lesser Slave Lake. Finalmente, reflexiona sobre el papel de los archiveros y su capacidad para manejar documentos frente a la realidad digital.

 

Palabras clave: Derecho a la memoria; Archivos; Preservación digital; Difusión; Acceso.

 

1 INTRODUÇÃO

 

Este artigo foi desenvolvido com base na pesquisa no Trabalho de Conclusão de Curso intitulado O uso do AtoM para construção da memória em arquivos de direitos humanos. Apresenta o conceito de memória e destaca a dimensão coletiva que a mesma assume no campo da arquivologia, apostando na relação entre os arquivos e o direito à memória, em especial algumas iniciativas destinadas à construção da memória no ambiente digital. Através de um estudo de caso em sites que se utilizam do software AtoM, refletimos sobre a atuação de arquivistas e sua capacidade para tratar dos documentos digitais, considerando os impactos das tecnologias da informação nesse contexto.

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO

O conceito de memória apresenta variadas definições de acordo com o campo de conhecimento no qual está sendo discutido. Para a psicologia, é a habilidade cognitiva de relembrar, armazenar em nosso cérebro as experiências passadas, as sensações, que servirão de aprendizado para executar uma ação posterior. Com base nesta definição, Laura Millar[1] (2006) estabelece a memória inicialmente como um fenômeno individual, fruto de experiências particulares. A autora ressalta ainda que a memória é seletiva – é impossível memorizar tudo –, que costumamos recordar apenas aquilo que, para nós, é considerado significativo.

Na mesma linha, Immaculada Lopez (2008, p. 32) afirma que:

 

Cada pessoa carrega dentro de si suas vivências, impressões, acompanhadas de suas aprendizagens. Não guarda tudo, pois a memória é sempre seletiva. Vale ressaltar que os critérios do que é significativo ou não resultam do espaço e do tempo em que se vive. A história de cada um contém a história de um tempo, dos grupos a que pertence e das pessoas com quem se relaciona.

 

Já no campo da arquivologia, destaca-se a dimensão coletiva da memória. É através dos arquivos que os fatos antes restritos aos sujeitos que os vivenciaram passam a ser compreendidos por terceiros. Não se pode lembrar do que não foi presenciado por conta própria, mas no momento em que ocorre o registro nos documentos, a lembrança transforma-se em conhecimento público.

It is in this transition from remembering to knowing that we move from the realm of individual to collective memory. It is a move that involves sharing our inner thoughts with others, creating stories from memories, and preserving, interpreting, and mediating external evidencedocuments, artifacts, architectural sites, geographic placesto create a factual basis for individual memories and to communicate those recollections, and the emotional resonance they carry, outside of our single selves to our wider community. And it is herefinallythat the relationship between archives and memory gains strength. (MILLAR, 2006, p.118-119)

 

O direito à memória costuma ser abordado a partir da redemocratização de determinado país. Findo um regime opressor, suas vítimas recorrem aos arquivos para buscar justiça. Mais do que a punição individual daqueles que praticaram os crimes de perseguição política, tortura e outras formas de violência, os documentos permitem o despertar de uma consciência coletiva, na medida em que os atos de barbárie tornam-se conhecidos através destes.

Ciente deste quadro, optamos por investigar iniciativas de construção da memória aplicada às minorias sociais. O termo ‘minorias’ é aqui empregado em sua acepção sociológica, isto é, grupos sociais desprivilegiados, que em determinado momento histórico foram - e em muitos casos continuam sendo –, perseguidos por conta de sua orientação política, religiosa, sexual, raça, gênero, entre outros fatores. O conceito se aplica mesmo aos grupos que, estatisticamente, constituem maioria da população em determinada sociedade, a exemplo das mulheres e das pessoas negras no Brasil.

 

A condição da memória como direito humano está no fato de que é preciso que a sociedade se lembre dos atos que cometeu para não repeti-los, é preciso lembrar-se dos horrores, das torturas, dos massacres e dos genocídios, para que, tendo consciência do estado de barbárie, a humanidade não volte a fazê-los (POLLI, 2019, p. 81).

 

No caso brasileiro, podemos citar os arquivos produzidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI). Fichas de prisioneiros, informes sobre movimentos sociais e operações militares, e diversos outros documentos, que representavam o estamento burocrático ditatorial, foram posteriormente utilizados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) durante a produção de seus relatórios. Na Argentina, destaca-se a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), que se utilizou de reportagens jornalísticas e outros materiais para investigar o desaparecimento dos críticos ao regime. Esses são apenas dois exemplos de iniciativas fundamentais para manter viva a memória das vítimas de regimes de exceção.

Após destacar a importância dos arquivos no exercício do direito à memória, cabe investigar como ocorre sua ambientação em meio digital. As tecnologias da informação se fazem presentes em diversas atividades do cotidiano, inclusive na prática arquivística. Cada vez mais, amplia-se a digitalização dos documentos, bem como a produção de documentos nato digitais. Nesse contexto, surge o Open Archival Information System (OAIS), que consiste em um modelo conceitual a ser adotado pelas instituições arquivísticas, cuja finalidade é a preservação dos documentos e sua disponibilização para uma determinada comunidade de usuários. O objetivo é estabelecer uma cadeia de custódia ininterrupta desde a gênese dos documentos até o momento de sua eliminação ou guarda permanente.

O modelo OAIS é composto pelo Sistema Informatizado de Gestão Arquivística de Documentos (SIGAD), pelos Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDC-Arq) e pelas plataformas de acesso. O SIGAD é voltado para a gestão dos documentos nas fases corrente e intermediária e os RDC-Arq cuidam da preservação tanto de documentos considerados de valor permanente quanto daqueles que, apesar de estarem nas fases corrente ou intermediária, são considerados complexos e de longa temporalidade. Já as plataformas de acesso tratam da difusão, descrição e acesso aos documentos.

O ambiente relacionado com o exercício do direito à memória são as plataformas de acesso. É através delas que os documentos de arquivo tornam-se disponíveis para o público. Visando analisar iniciativas de construção da memória nessas plataformas, optamos pelo AtoM, um software livre desenvolvido pela empresa canadense Artefactual cujo nome é um acrônimo para ‘Acesso to Memory’ ou ‘acesso à memória’, traduzido para o português. Este programa busca a automação e o compartilhamento das descrições arquivísticas, estando de acordo com as normas internacionais de descrição, e também com a brasileira.

Entre as suas funcionalidades, o AtoM permite a elaboração de descrições do acervo, além das concernentes às instituições custodiadoras, às funções e aos registros de autoridade. A instituição arquivística pode criar seu próprio quadro de arranjo, organizado de acordo com uma estrutura hierárquica. É possível realizar upload do documento na íntegra, disponibilizando-o às/aos usuárias/os, que podem efetuar o download do AtoM e testá-lo em seu servidor web, ou localmente, através de uma máquina virtual. A instituição pode importar descrições de terceiros à sua plataforma ou compartilhar as suas próprias descrições, exportando dados codificados no formato XML-EAD ou Dublin Core.

Com base na lista de instituições que fazem uso do AtoM, fornecida pela própria desenvolvedora do mesmo, foram selecionadas duas iniciativas para realização de um estudo de caso: MercosurGuía de Archivos y Fondos Documentales; e Lesser Slave Lake IRC Treaty Aboriginal Rights Research Archives. Passamos a apresentá-las adiante.

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

O site MercosurGuía de Archivos Y Fondos Documentales, surgiu em decorrência de um projeto de pesquisa implementado pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH). Nele encontram-se documentos relacionados às violações de direitos humanos praticadas pelas ditaduras do Cone Sul durante a segunda metade do século XX.

Há cinco categorias pelas quais se pode realizar a busca: fundos documentais; entidade/pessoa (produtor); instituição arquivística; normativas de acesso; e processos judiciais.

Na categoria ‘fundos documentais’, são encontradas 275 descrições arquivísticas sobre o acervo, e em 40 delas estão disponíveis objetos digitais para visualização, isto é, a imagem dos documentos descritos. A categoria ‘entidade/pessoa (produtor)’ destina-se aos registros de autoridade, apresentando um total de 311 registros, dos quais 235 estão especificados como ‘entidades coletivas’ e 35 como ‘pessoas’. Os demais não estão especificados, sendo recuperados apenas quando a busca não é delimitada pelo tipo de entidade.

Na categoria ‘instituições arquivísticas’, encontram-se as descrições referentes às instituições custodiadoras de documentos, 125 no total. Já a categoria ‘normativas de acesso’ destina-se às normativas que regulam acesso aos arquivos e fundos documentais vinculados com as violações aos direitos humanos, de acordo com a legislação vigente em cada país do Cone Sul. Por fim, na categoria ‘processos judiciais’ encontram-se os processos vinculados ao aparato repressivo montado na região.

Por sua vez, o site Lesser Slave Lake IRC Treaty Aboriginal Rights (LSLIRC-TAR) é dedicado à defesa dos direitos dos povos aborígenes do Canadá, reunindo descrições de arquivos relevantes para preservação de sua memória.

No LSLIRC-TAR, há um total de 29 descrições sobre o acervo arquivístico e 14 registros de autoridade, além de categorias destinadas às descrições de instituições arquivísticas e de funções, mas que não apresentam nenhum resultado. Os assuntos pelos quais se pode percorrer na base são ‘Elder Interviews’, ‘Treaty 6’, ‘Treaty 7’, ‘Treaty 8’, ‘Treaty annuity’ e ‘Treaty Playlists’, em quatro diferentes locais: Alberta, Canada; British Columbia, Canada; High Prairie, Alberta; e Slave Lake, Alberta. Em nenhuma das descrições apresentadas o objeto digital ao qual se referem encontrava-se disponível no momento da pesquisa.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 Com base nas discussões apresentadas neste artigo, evidencia-se a necessidade de repensar a atuação de arquivistas em nossa sociedade. Profissionais de arquivo não são apenas dotadas/os da capacidade técnica para lidar com os documentos de arquivo, mas também, e fundamentalmente, seres políticos.

Como exposto anteriormente, os arquivos podem ser utilizados na busca por justiça às vítimas de regimes autoritários e como forma de manter sua memória viva. Portanto, não são apenas fontes de consulta destinadas à compreensão de um acontecimento, mas constituem um mecanismo de reparação histórica fundamental na garantia dos direitos humanos.

Entretanto, para que cidadãs e cidadãos percebam todo seu potencial, os documentos dependem do tratamento que lhes é dado pela/o arquivista. Como consequência de suas ações, pode ocorrer o silenciamento de determinadas minorias sociais.

Nesse contexto, em defesa do direito à memória, as plataformas arquivísticas de descrição, difusão e acesso surgem como uma alternativa viável para evidenciar grupos minoritários que frequentemente ficam à margem da história. No presente texto foram destacadas, respectivamente, as vítimas das ditaduras militares do Cone Sul na segunda metade do século XX, e os povos aborígenes do Canadá.  Sugere-se, portanto, dar continuidade aos estudos sobre a memória no ambiente digital, analisando iniciativas já existentes que incluam outros grupos ou, ainda, a criação e desenvolvimento de projetos dedicados ao tema.

Paralelamente, é relevante discutir os impactos das tecnologias da informação na prática arquivística. De que maneira podemos utilizá-las visando exercer a profissão da melhor maneira possível? Arquivistas estão sendo capacitadas/os, desde sua graduação, para tratar dos documentos nato digitais? Como realizar essa capacitação? As instituições custodiadoras possuem recursos técnicos e financeiros que lhes permitam sua inserção no ambiente digital? Quais políticas devem ser estabelecidas para que isso ocorra? Responder tais questões parece fundamental para o avanço da arquivologia como um todo.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARTEFACTUAL. Users. Disponível em: https://wiki.accesstomemory.org/Community/Users. Acesso em: 26 fev. 2021.

INSTITUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM DIREITOS HUMANOS (Argentina). Guia de arquivos e fundos documentais. Disponível em:  http://atom.ippdh.mercosur.int/index.php/. Acesso em: 28 fev. 2021.

LESSER SLAVE LAKE INDIAN REGIONAL COUNCIL (LSLIRC-TAR). Treaty Aboriginal Rights Ressearch Program. Disponível em: https://lslirc-tarrarchives.accesstomemory.org/. Acesso em: 28 fev. 2021.

LOPEZ, I. Memória social: uma metodologia que conta histórias de vida e o desenvolvimento local. São Paulo: Museu da Pessoa: Senac São Paulo, 2008. 98 p. Disponível em: https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1074500/mod_resource/content/1/LEITURA%20CO PLEMENTAR%20-%20Livro%20-%20Mem%C3%B3ria%20Social.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.

MILLAR, L. Touchstones: Considering the Relationship Between Memory and Archives. Archivaria, Ottawa, n. 61, p. 105-126, Sept. 2006. Disponível em: https://archivaria.ca/index.php/archivaria/article/view/12537/13679. Acesso em: 24 fev. 2021.

PEREIRA, I. M. O uso do Atom para a construção da memória em arquivos de direitos humanos. 2019. TCC (Graduação em Arquivologia) – Curso de Arquivologia, Departamento de Ciência da Informação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

POLLI, C. T. S. Entre a memória e os direitos humanos: do direito à memória e os problemas informacionais da memória social. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciência da informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2019.

 



[1] Para dar visibilidade à produção científica feminina, escolhemos citar os prenomes e sobrenomes das autoras ao longo do texto. Sem isso, elas ficariam ‘escondidas’ por trás dos sobrenomes paternos ou maritais. Da mesma forma, a concordância nominal com flexão de gênero feminino (em primeiro lugar) e masculino é, para nós, uma política de escrita irrenunciável, um movimento que já vem ocorrendo há algum tempo em muitas áreas acadêmicas fora do campo infodocumentário.