A recepção dos contos de fadas por crianças cegas

 

The reception of fairy tales by blind children

 

La recepción de los cuentos de hadas por parte de los niños ciegos

 

 

Christoffer Sabatke

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Brasil

 

Sueli Bortolin

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Brasil

 

 

 

Submetido em: 22/04/2021

Aceito em: 14/06/2021

Publicado em: 28/10/2021

 

Licença:

 

Autor para correspondência: Christoffer Sabatke

Email: cmsabatke@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2749-9804

 

 

 

Como citar este artigo:

 

SABATKE, Christoffer; BORTOLIN, Sueli. A recepção dos contos de fadas por crianças cegas. REBECIN, São Paulo, v. 8, edição especial, p. 01-11, 2021. DOI:  10.24208/rebecin.v8i.258

RESUMO

 

Este texto apresenta uma síntese do Trabalho de Conclusão de Curso defendido em 2017 no âmbito do curso de Biblioteconomia da Universidade Estadual de Londrina. Ressalta os questionamentos que influenciaram na escolha do tema do TCC, bem como, os objetivos que nortearam o trabalho. Elenca, brevemente, recortes dos temas mais relevantes presentes no referencial teórico, como: contos de fadas; contação de histórias, Estética da Recepção e livro sensorial. Destaca, também, os desafios encontrados pelos autores durante o desenvolvimento da pesquisa, os receios que envolveram o processo de seleção do conto de Rapunzel e como ocorreu a confecção do livro sensorial, usado para a aplicação da atividade de contação de história, com uma criança com deficiência visual de uma escola pública da região norte do estado do Paraná. Por fim, conclui com sugestões a respeito da confecção de livros sensoriais para crianças com deficiência visual e as considerações acerca dos resultados obtidos ao término da pesquisa.

 

Palavras-Chave: Deficiência Visual; Contos de Fadas; Contação de Histórias; Estética da Recepção; Livro Sensorial.

 

ABSTRACT

 

This text presents a synthesis of the Course Conclusion Work defended in 2017 within the scope of the Librarianship course at the State University of Londrina. It highlights the questions that influenced the choice of the theme of the TCC, as well as the objectives that guided the work. Briefly lists clippings of the most relevant themes present in the theoretical framework, such as: deficiencies; fairy tale; storytelling, Reception Aesthetics and sensory book. It also highlights the challenges encountered by the authors during the development of the research, the fears that involved the selection process of Rapunzel's story and how the making of the sensorial book, used for the application of the storytelling activity, with a child occurred. with visual impairment of a public school in the northern region of the state of Paraná. Finally, it concludes with suggestions regarding the making of sensory books for visually impaired children and considerations about the results obtained at the end of the research.

 

Keywords: Visual impairment; Fairy tale; Storytelling; Aesthetics of Reception; Sensory Book.

 

RESUMEN

 

Este texto presenta un resumen del Trabajo de Finalización de Curso defendido en 2017 en el marco del curso de Biblioteconomía de la Universidad Estatal de Londrina. Destaca las cuestiones que influyeron en la elección del tema del TCC, así como los objetivos que guiaron el trabajo. Enumera brevemente los temas más relevantes presentes en la referencia teórica, como son: los cuentos de hadas; la narración, la estética de la recepción y el libro sensorial. También se destacan los desafíos encontrados por los autores durante el desarrollo de la investigación, los temores que involucraron el proceso de selección del cuento de Rapunzel y cómo ocurrió la confección del libro sensorial, utilizado para la aplicación de la actividad de narración con un niño con discapacidad visual de una escuela pública de la región norte del estado de Paraná. Finalmente, se concluye con sugerencias sobre la elaboración de libros sensoriales para niños con discapacidad visual y consideraciones sobre los resultados obtenidos al final de la investigación.

 

Palabras clave: Discapacidad visual; Cuentos de hadas; Narración; Estética de la recepción; Libro sensorial.

 

1 INTRODUÇÃO

 

Contar histórias é uma arte que, desde muito tempo, encanta pessoas pelo mundo afora. Quem nunca ficou, por exemplo, arrepiado só de ouvir aqueles contos aterrorizantes sobre boitatá, fantasmas, lobisomens, entre outros seres fantásticos, que assombravam as noites na casa dos avós? Ou mesmo, viajou ao passado, para épocas longínquas, ouvindo histórias de quando nossos pais eram crianças, histórias essas que geralmente se iniciavam com frases clássicas como: “Na minha época...” e “Quando eu era criança…”.

O fato é que, a contação de histórias não necessita de luxo, é democrática e acessível aos mais diversos públicos, basta um narrador, um ouvinte e uma boa história. Contudo, ao longo dos anos, várias técnicas foram sendo introduzidas, tornando a contação de história cada vez mais aprimorada, mais teatral. A utilização de fantoches, dedoches, sombras, instrumentos musicais, entre outros apetrechos, fez com que a contação de histórias assumisse um importante papel para a construção do conhecimento e a perpetuação da memória, além de se destacar no âmbito pedagógico.

Todavia, um dos recursos mais indispensáveis e companheiro de todo contador de histórias é o livro. Este pode ser aproveitado tanto como apoio pedagógico, auxiliando no processo de preparação e desenvolvimento de uma contação, quanto como um recurso visual, utilizado durante a realização da atividade com o público. No ambiente escolar, é comum que o professor faça a contação através da leitura do livro e, posteriormente, mostre as imagens para os alunos. Contudo, como desenvolver esse tipo de atividade se o aluno for deficiente visual? Qual seria o recurso adequado? Qual seria a sua recepção? Estes são alguns dos questionamentos que motivaram o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado A recepção dos contos de fadas por crianças cegas, desenvolvido entre 2016 e 2017, na Universidade Estadual de Londrina.

O objetivo da pesquisa foi verificar a recepção dos contos de fadas por crianças com deficiências visuais, através da contação de histórias, utilizando como recurso um livro sensorial, que foi confeccionado com o auxílio das irmãs da orientadora do TCC. A pesquisa seguiu o delineamento de estudo de caso, utilizando como instrumentos de coleta de dados a entrevista informal e a observação participante.

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO

 

Os contos de fadas, como atualmente são conhecidos, têm como principais precursores Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) – os Irmãos Grimm – e Hans Christian Andersen (1805-1875). Diferentes das demais histórias infantis, os contos de fadas apresentam características próprias, como o uso de magias e encantamento e um núcleo contendo um herói, ou uma heroína, que enfrenta problemas existenciais e obstáculos a serem transpostos pela busca de sua realização pessoal (SCHNEIDER; TOROSSIAN, 2009).

Pautados, principalmente, nos estudos de Bruno Bettelheim, autor do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, verificamos uma característica dos contos de fadas que influenciou a nossa opção por eles: a importância psicológica. Segundo o autor, ao contrário do que pensam muitos adultos, de que os contos de fadas podem afastar as crianças da realidade, os mesmos conseguem desenvolver a capacidade de fantasia infantil, fornecendo alternativas para que as crianças possam superar suas ansiedades e ódios, favorecendo para que estas se encorajem na luta por valores amadurecidos, em uma crença positiva na vida, em fim, de que é possível a existência de um final feliz (BETTELHEIM, 2004). Ainda de acordo com o autor, os contos de fadas podem transmitir às crianças a mensagem de que 

 

[...] a luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa (BETTELHEIM, 2004, p. 14).

 

Entendemos que essa mensagem positiva atrelada aos contos de fadas, poderia ser apropriada para o público-alvo de nossa pesquisa, principalmente se optássemos por um conto que abordasse o tema da deficiência visual. Desta forma, chegamos ao clássico Rapunzel. Criada pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, narra a história de amor entre Rapunzel, uma bela moça, com cabelos muito longos, que é trancada em uma torre e um príncipe, que ao tentar resgatá-la, cai em um espinheiro que perfura seus olhos, o deixando cego. No fim, as lágrimas de Rapunzel devolvem a visão ao príncipe e eles vivem felizes para sempre. Esse contexto em que a história se passa, mesmo que tenha nos deixado com alguns receios, pareceu ideal para tentar provocar reações e emoções em nosso público, a fim de verificar a recepção durante a realização das atividades propostas.

A contação de histórias remonta aos povos ancestrais que contavam e encenavam histórias com o intuito de difundirem a sua cultura e as experiências adquiridas pelo grupo ao longo do tempo (RAMOS, 2011). Para sociedades que ainda não tinham domínio sobre a escrita, a transmissão oral, aliada à memória, tiveram papel fundamental para a construção do conhecimento e, também, no armazenamento e transmissão do mesmo às futuras gerações (TORRES; TETTAMANZY, 2008). Diante deste cenário, os contadores de história assumiram um papel de destaque perante as comunidades. Estes eram considerados verdadeiros sábios, pois apresentavam conselhos fundamentados em fatos, histórias e mitos (RAMOS, 2011).

Na Idade Média, principalmente quando falamos do contexto histórico europeu, o acesso à escrita e à leitura - ou ao livro - continuou restrito a maior parcela da sociedade, sobretudo, devido ao controle e à influência exercida pela igreja. Nessa conjuntura, os contadores de histórias mantiveram o seu papel de prestígio e compunham seu repertório com histórias deixadas por gerações de diferentes culturas (FRISON, 2015).

Os avanços tecnológicos e as constantes mudanças sociais influenciaram nos rumos da contação de histórias na contemporaneidade. Conforme novos meios de comunicação foram surgindo, a contação foi perdendo espaço nos encontros sociais. Contudo, com a universalização da internet, redes sociais como Facebook, Instagram e Youtube se tornaram canais importantes de disseminação de informação e espaços interessantes de atuação para que os contadores se reinventem e se atualizem.

 Durante a década de 1960, na Alemanha, surge a Estética da Recepção, uma teoria da literatura que coloca o leitor em posição de destaque dentro do sistema literário, levando em conta a importância que o mesmo pode desempenhar dentro do processo de leitura. Considerado um dos pais da Estética da Recepção, Hans Robert Jauss desenvolveu sete teses, que contribuíram para a análise dos resultados obtidos a partir da atividade que desenvolvemos durante a pesquisa.

 

3 A CONFECÇÃO DO LIVRO SENSORIAL E A APLICAÇÃO DA ATIVIDADE

 

Optamos pelo livro sensorial como suporte para a contação de história. Este tipo de livro, de acordo com Romani (2016, p. 19) “[...] apresenta dupla leitura: visual e tátil, contemplando todos os leitores. Parte-se do pressuposto que duas formas de escrita, o braille e a fonte ampliada, coexistem no campo da página, e a ilustração, obrigatoriamente, apresentará algum tipo de relevo.” Além disso, os livros sensoriais muitas vezes contam com aromas específicos, que tornam a experiência do leitor ainda mais imersiva, principalmente, para uma criança com deficiência visual. 

A primeira etapa da confecção do livro constituiu-se da adaptação do conto de Rapunzel, com o corte de alguns trechos, a fim de deixá-lo mais reduzido. Posteriormente, o texto foi traduzido e impresso para o braille. Por fim, contando com o auxílio das irmãs da orientadora do TCC, foram elaboradas as imagens táteis e a montagem do livro. Para tanto, foram utilizadas diversas técnicas e materiais, muito comuns no artesanato. Além disso, aspergimos em algumas imagens um perfume feminino adocicado, com notas de baunilha, com intuito de criar uma experiência olfativa que remetesse, de alguma forma, à magia dos contos de fadas. Depois de finalizado, o livro totalizou 22 páginas, entre texto em braille e imagens táteis.

Para que pudéssemos nos aproximar do principal objetivo da pesquisa – verificar a recepção dos contos de fadas por crianças com deficiência visual – precisávamos promover uma atividade que nos colocasse frente a frente com o referido público, e que permitisse e/ou criasse, através do seu desenvolvimento, os insumos necessários para tanto. Desta forma, optamos pela realização de uma contação de história, aliada a técnica da observação participante, que ocorreu em uma escola pública de um município da região norte do Estado do Paraná, com um aluno chamado Benjamin[1]. Cego congênito, o mesmo tinha dez anos na época e dominava a leitura do braille. A atividade foi dividida em dois momentos: primeiro a contação do conto de Rapunzel e, posteriormente, a leitura do texto braille e das imagens táteis pelo participante.

         A contação de história ocorreu de forma satisfatória. Benjamin se mostrou muito concentrado e atento aos detalhes, mesmo já conhecendo o conto de Rapunzel. Por outro lado, também foi participativo quando solicitado e se mostrou surpreso ao saber que o príncipe havia perdido a visão. Se analisado sob a ótica da Estética da Recepção, podemos dizer que Benjamin assumiu a posição de um leitor participativo, e que através de seu conhecimento prévio – da sua vivência acerca da cegueira –, foi capaz de interpretar e contribuir com a leitura que estava sendo feita, conforme aponta a 2ª tese da teoria de Jauss, que aborda a interação entre leitor/obra, partindo do conhecimento prévio que o mesmo dispõe. Acreditamos também, que a 4ª tese de Jauss se enquadra nesta observação, uma vez que a contação da história, possa ter contribuído para a construção, ou reconstrução, do horizonte de expectativa do participante.

Na sequência, Benjamin realizou a leitura do livro sensorial. Nesta etapa, identificamos alguns problemas que comprometeram a experiência dele com o material. Apesar de ter amplo domínio do braille, a presença de travessões no decorrer do texto foi um empecilho, fazendo com que em alguns momentos, precisássemos lhe auxiliar neste sentido. Além disso, algumas das imagens ficaram muito pequenas e com excesso de detalhes, o que acabou dificultando a compreensão das mesmas por parte de Benjamin. Por outro lado, o uso do perfume se mostrou positivo, levando o participante, por diversas vezes, a aproximar o livro do nariz e a comentar que o aroma era agradável.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Evidenciou-se que ainda é escassa a comercialização e, principalmente, os estudos sobre o uso de livros sensoriais. Assim, entendemos que pesquisas que se disponham a desenvolver novas técnicas para a produção destes livros são fundamentais para que os tornem cada vez mais populares e acessíveis. Durante a confecção e, principalmente, após a experiência com Benjamin, constatamos que a elaboração de imagens táteis para livros sensoriais, deve partir de uma premissa mais minimalista, valorizando aspectos essenciais para tornar a experiência tátil mais eficaz. Por outro lado, a utilização de materiais como o EVA, lixa, fita de cetim, lã, etc., se mostrou mais interessante do que a técnica de contorno com tinta relevo.

Por fim, destacamos que independentemente do método utilizado – leitura em braille ou tátil, contação de histórias -, o papel do profissional envolvido na contação de história é fundamental para que a recepção ocorra de forma satisfatória, cabendo a este profissional a sensibilidade de entender as necessidades e singularidades do seu público.

 

REFERÊNCIAS

 

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

 

FRISON, S. Clarice Lispector e o contador de histórias: literatura, recepção e performance. 2015. 176 f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: https://bityli.com/h3QGs. Acesso em: 19 abr. 2021.

 

RAMOS, A. C. Contação de histórias: um caminho para a formação de leitores? 2011. 136 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011. Disponível em: https://bityli.com/BObxy. Acesso em: 24 mar. 2021.

 

ROMANI, E. Design do livro tátil ilustrado: processo de criação centrado no leitor com deficiência visual e nas técnicas de produção gráfica da imagem e do texto. 2016. 311 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://bityli.com/lK4LK. Acesso em: 10 fev. 2021.

 

SCHNEIDER, R. E. F.; TOROSSIAN, S. D. Contos de fadas: de sua origem à clínica contemporânea. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 132-148, ago. 2009. Disponível em: https://bityli.com/9KOCP. Acesso em: 17 fev. 2021.

 

TORRES, S. M.; TETTAMANZY, A. L. L. Contação de histórias: resgate da memória e estímulo à imaginação. Sessão aberta: revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas, Porto Alegre, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: https://bityli.com/LpG4U. Acesso em: 17 fev. 2021.

 



[1] Nome fictício em homenagem ao Dr. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, ex-diretor e professor do Instituto Benjamin Constant (IBC), centro nacional de referência no atendimento de crianças e adolescentes cegos, surdocegos, com baixa visão e deficiência múltipla.