O impacto do estereótipo de gênero sobre a mulher bibliotecária do século XXI no Brasil 

 

The impact of the gender stereotype on the library woman of the XXI century in Brazil

 

El impacto de los estereotipos de género en las bibliotecarias del siglo XXI en Brasil

 

Isadora Escalante
   Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 

Brasil

 

Patrícia Mallmann
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 

Brasil

 

Luciano Coutinho
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 

Brasil

 

Submetido em: 23/04/2021

Aceito em: 14/06/2021

Publicado em: 28/10/2021

 

Licença:

 

Autor para correspondência: Isadora Escalante

Email: isadora.cristal@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3494-6182

 

Como citar este artigo:

ESCALANTE, Isadora; MALLMANN, Patrícia; COUTINHO, Luciano. O impacto do estereótipo de gênero sobre a mulher bibliotecária do século XXI no Brasil. REBECIN, São Paulo, v. 8, edição especial, p. 01-12. 2021. DOI: 10.24208/rebecin.v8i.243

RESUMO

 

Estuda a representação dos estereótipos de gênero na Biblioteconomia. Objetiva analisar impactos causados pela perpetuação destes sobre a mulher bibliotecária brasileira no século XXI, em especial em suas atividades biblioteconômicas e cotidianas em bibliotecas vinculadas à Rede de Bibliotecas de Pesquisa (RBP) do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Utiliza a entrevista como técnica de coleta de dados e a análise de conteúdo como técnica de análise. Aponta que o reconhecimento social da profissão está relacionado a imagens estereotipadas sobre a mulher bibliotecária, que não condizem com seu fazer profissional, mas acabam por compeli-las a corresponderem às demandas sociais, que são construídas a partir desse modelo estereotipado e distorcido da realidade. Indica que esse modelo gera problemas tanto para a inserção no mercado de trabalho, em particular, quanto na sociedade, de maneira geral. Considera que a inferência do gênero na profissão existe, persiste e permeia a vida das mulheres bibliotecárias em cargos de chefia nas questões observadas, embora por elas nem sempre seja percebida.

 

Palavras-Chave: Estereótipo de gênero; Mulher bibliotecária; Biblioteconomia no Brasil.

 

ABSTRACT

 

It studies the representation of gender stereotypes in Librarianship. It aims to analyze the impacts caused by the perpetuation of gender stereotypes on brazilian women librarians in the 21st century, especially in their librarianship and daily activities in libraries linked to the Rede de Bibliotecas de Pesquisa (RBP) of the Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). It uses the interview as a data collection technique and content analysis as an analysis technique. It points out that the social recognition of the profession is related to stereotypical images about women librarians, which, because it does not match the professional practice of these women, ends up compelling them to meet social demands, which are built on this stereotypical and distorted model of reality. It indicates that this model generates problems both for the insertion in the librarianship job market, in particular, and in society, in general. It considers that the gender inference in the profession exists, persists and permeates the lives of women librarians in leadership positions in the issues observed, although it is not always perceived by them.

 

Keywords: Gender stereotype; Librarian woman; Library Science in Brazil.

 

RESUMEN

Estudia la representación de los estereotipos de género en la Biblioteconomía. Su objetivo es analizar los impactos causados por la perpetuación de estos en las bibliotecarias brasileñas del siglo XXI, especialmente en su actividad bibliotecaria y cotidiana en las bibliotecas vinculadas a la Red de Bibliotecas de Investigación (RBP) del Ministerio de Ciencia, Tecnología, Innovaciones y Comunicaciones (MCTIC). Utiliza la entrevista como técnica de recogida de datos y el análisis de contenido como técnica de análisis. Señala que el reconocimiento social de la profesión está relacionado con las imágenes estereotipadas sobre las mujeres bibliotecarias, que no se corresponden con su práctica profesional, sino que acaban obligándolas a cumplir con las demandas sociales, que se construyen sobre este modelo estereotipado y distorsionado de la realidad. Indica que este modelo genera problemas tanto para la inserción en el mercado laboral, en particular, como en la sociedad, en general. Considera que la inferencia de género en la profesión existe, persiste y permea la vida de las mujeres bibliotecarias en posiciones de liderazgo en los temas observados, aunque no siempre es percibida por ellas.

 

Palabras clave: Estereotipos de género; Mujeres bibliotecarias; Biblioteconomía en Brasil.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A temática de gênero na Biblioteconomia têm sido foco de importantes debates nos últimos anos, apesar de se perceber a pouca presença desta em trabalhos da área, sobretudo a partir da percepção da existência de uma forte associação a estereótipos que interferem na construção da profissão. Embora o debate sobre gênero seja amplo e não diga respeito apenas às mulheres, posto que é uma construção social e não algo essencialmente natural, acompanha-se as discussões de Benoit (2000, p. 76) que visavam “superar e erradicar os referenciais ‘biológicos-sexuais’ que envolviam a temática feminista”.

As mulheres, que são maioria na área biblioteconômica e têm importante participação na sua construção enquanto ciência e profissão, continuam a ser estigmatizadas, não somente pelo lugar que ocupam na sociedade como são estereotipadas em suas funções laborais. Esse processo gera impactos tanto na mulher bibliotecária quanto no reconhecimento social da profissão. Este artigo apresenta resultados de pesquisa mais ampla, que encontrou indícios do estereótipo de gênero da bibliotecária através de imagens buscadas na web por diferentes navegadores e diferentes usuários, representando-a como “velha solteirona” ou “jovem hipersexualizada” (ESCALANTE, 2017). Objetivou-se analisar os impactos causados pela perpetuação dos estereótipos de gênero sobre a mulher bibliotecária no Brasil, tendo como foco as bibliotecárias-chefes das instituições de pesquisa em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), vinculadas à Rede de Bibliotecas de Pesquisa (RBP) do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Os dados foram coletados por entrevista semiestruturada, entre julho e setembro de 2017, e analisados com análise de conteúdo.

 

2 GÊNERO, ESTEREÓTIPO E A MULHER BIBLIOTECÁRIA

 

O conceito de gênero surge no final da década de 1960 e se consolida nos anos de 1970 (FORREST, 2014). Nasce de movimentos feministas que reivindicavam mudanças políticas e sociais, trazendo consigo contribuições teóricas significativas para fundamentar as exigências. Nesse período, começa a se fazer a distinção entre os termos sexo e gênero, de forma que “sexo” determina características biológicas e “gênero” inclui diversas construções sociais implícitas nas relações entre o masculino e o feminino. Tais relações de gênero são marcadas, sobretudo, por relações de poder, como apontam diversos autores (FORREST, 2014; SCOTT, 199). Para Scott (1991), o conceito de gênero rejeita o determinismo biológico; não pretende, entretanto, negar a Biologia, mas destacar a construção social e histórica produzida segundo características biológicas.

Para compreender as divisões hierárquicas entre homens e mulheres é preciso observar o modo como as características sexuais dos indivíduos são “[...] representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas [...]” (LOURO, 2010, p. 21). Afinal, são essas representações que vão construir o que é feminino ou masculino na sociedade. Nesse processo, manifestam-se modelos de estereótipo que remetem a “[...] matriz de opiniões, sentimentos, atitudes e reações dos membros de um grupo, com as características de rigidez e homogeneidade” (SIMÕES, 1985, p. 207). É uma maneira simplista de definir determinado grupo e que dificilmente se aplica a todas as pessoas. D’Amorim (1997, p. 2) conceitua estereótipo de gênero como “conjunto de crenças acerca dos atributos pessoais adequados a homens e mulheres, sejam estas crenças individuais ou partilhadas”.

Walter e Baptista (2007) pontuam estereótipos relacionados ao sexo feminino: a) profissões não competitivas, que não exigem esforço intelectual, cujo exercício demanda comportamentos relacionados àqueles das donas de casa (ordem, asseio, servir pessoas); b) mulheres no Brasil recebem menores remunerações que homens, exercendo as mesmas posições; c) espera-se delas comportamentos dóceis, sendo que atitudes mais assertivas são consideradas agressividade e podem ser associadas ao fato de serem “solteironas” e “recalcadas”, enquanto aos homens maior agressividade é associada personalidade forte. Os estereótipos refletem nas escolhas e na ascensão profissional de mulheres, especificamente nas carreiras de CT&I, pois, por meio de mecanismos sutis de segregação de gênero, surgem barreiras que dificultam a progressão das mulheres, se tratando de “comportamentos culturalmente enraizados e internalizados por aqueles que estão atuando no campo científico” (OLINTO, 2011, p. 71).

Percebe-se tensões entre os estereótipos tradicionais impostos sobre a mulher bibliotecária - séria, madura, de coque, roupas fechadas, óculos, ranzinza e que dedica o tempo a guardar livros e confeccionar fichas catalográficas, sempre pedindo silêncio (MORENO; BASTOS, 2013); e os novos estereótipos - jovem, com roupas curtas, desinibida, hiperssexualizada, que atrai a atenção dos usuários (ESCALANTE; PEREIRA; COUTINHO, 2017). Ainda que algumas mulheres transitem livremente em um mundo repleto de novas possibilidades identitárias, outras talvez se vejam perplexas diante da necessidade de desempenhar papéis menos tradicionais que o exercício pleno da profissão requer (MARTUCCI, 1996).

Enquanto profissão majoritariamente feminina, a Biblioteconomia possui características particulares. Conforme Olinto (1997), somente conscientes dos mecanismos de desigualdades que tendem a limitar ou desvalorizar a atividade profissional da mulher, a bibliotecária estará mais apta a lutar pela sua valorização profissional. Nesse sentido, o feminismo se mostra ferramenta essencial para a luta das mulheres bibliotecárias, uma vez que questiona as hierarquias nas relações de gênero e propõe uma consciência de gênero feminino (SOUSA, 2014). “Essa consciência alicerça as estratégias políticas feministas, sejam práticas e/ou teóricas, visando ao enfrentamento das opressões de gênero, o que nem sempre acontece com outros movimentos de mulheres [...]” (COSTA; SARDENBERG; 1994).

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Foram entrevistadas nove bibliotecárias-chefe. Uma era doutora, três mestras e cinco especialistas. Oito bibliotecárias possuíam mais de 45 anos e uma tinha entre 30 e 45 anos. Sobre o tempo de profissão, as respostas variaram de 7 a 42 anos. Oito informaram ter filhos e apenas a mais jovem não. Essa questão se relaciona com as múltiplas jornadas de trabalho exercidas por mulheres, estando associada à descontinuidade da formação acadêmica de uma delas.

         Cinco responderam que Biblioteconomia não foi a primeira opção, enquanto quatro escolheram seguir essa carreira. Os motivos foram: a) recomendação de terceiros; b) já trabalharem em uma área próxima; c) ser uma profissão de meia jornada de trabalho; d) exemplo profissional de um bibliotecário; e) incentivo familiar; f) gosto pela leitura. Foram questionadas se características ditas femininas são necessárias ao exercício da profissão; a maioria discordou que características como: zelo, dedicação e gentileza sejam exclusivamente femininas, mas afirmaram sua importância na prática bibliotecária. Observou-se que essas características são mais associadas ao atendimento ao público, sobretudo em setores da biblioteca mais ocupados por mulheres, como o de referência.

         Baixos status e prestígio têm sido atribuídos à predominância de mulheres na Biblioteconomia. Ao serem questionadas sobre tal afirmação, seis discordaram, duas ratificaram, embora não concordem, e uma desconhecia a afirmativa. Entre os depoimentos discordantes, o desprestígio da profissão foi associado a: a) “crise de identidade permanente” na área; b) baixa influência do profissional frente à sociedade; c) hierarquia que vulnerabiliza o trabalho ao não reconhecê-lo como importante; d) atuação desvinculada à área fim da instituição. Uma entrevistada se posicionou contrária à ideia de que o desprestígio da área esteja ligado à sua feminização, mas sim à grande área à qual ela pertence. Presume-se que os depoimentos que acreditam na afirmação, mesmo não concordando, sejam reflexo de que questões de gênero ficam em segundo plano, sem problematizações.

         Pôde-se constatar a falta de autoconfiança presente na fala: “[...] existem trabalhos, feitos por mulheres em que elas falam: ‘será que isso que eu estou fazendo é bom?’. A pessoa [...] acaba por não reconhecer o valor do que ela faz”. A depoente salienta a impressão negativa acerca da profissão que certas bibliotecárias transmitem à sociedade. Acredita-se que isso esteja relacionado ao estereótipo de gênero como um dos fatores que impactam na imagem e no fazer das bibliotecárias quando não estão atuando diretamente nas funções da biblioteca. Outro depoimento indica que o preconceito sobre a profissional aparece como consequência da cultura organizacional de grandes empresas, que valorizam características ditas masculinas para uma gestão válida, legítima e bem sucedida. Na opinião das bibliotecárias, outras causas contribuem para a desvalorização da profissão: desconhecimento a respeito desta, falta de incentivos de políticas públicas e culpa do profissional.

Sobre as imagens de bibliotecárias recuperadas por usuários da web, em sua maioria representando dois estereótipos (bibliotecária jovem, sexy e provocativa; bibliotecária velha, ranzinza e carrancuda), foi perguntado às entrevistadas se já se sentiram impactadas por esses estereótipos. Constatou-se que cinco delas sentiram o impacto do estereótipo de gênero em suas trajetórias profissionais. Apesar de quatro bibliotecárias terem relatado não sentir o impacto, percebeu-se, a partir de dois depoimentos, que houve situações nas quais o estereótipo e a falta de reconhecimento profissional caminharam juntos, desde a escolha do curso.

A respeito de quais alternativas poderiam ajudar a modificar o estereótipo de gênero sobre a mulher bibliotecária, se destacaram: a) trabalho contínuo sobre as competências profissionais; b) conscientização do trabalho bibliotecário para a alta gestão; c) explicitação aos novos graduandos dos diversos perfis da profissão; d) incentivo às meninas para o enfrentamento de preconceitos; e) engajamento político; f) estímulo da prática profissional na escola; g) comportamento ético profissional; h) postura discreta; i) atualização profissional sobre ferramentas tecnológicas; j) proatividade com os usuários. Pode-se detectar que o processo de naturalização de uma discriminação é sociocultural e afeta o comportamento individual, como é possível ver pelo relato: “a gente precisa acreditar mais na gente, acreditar que a gente é capaz”. Assim, a compreensão deste processo poderá promover avanços na conscientização, a fim de que se possa desmistificar o pretenso caráter natural das discriminações praticadas contra os elementos femininos (SAFFIOTI, 1987).

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O estereótipo de gênero não só existe, como persiste e permeia a vida das mulheres bibliotecárias, mesmo das que ocupam cargos de chefia, embora nem sempre percebido por elas. Verificou-se que contingências do estereótipo de gênero influenciam na capacidade (sub)consciente das bibliotecárias, impactando em sua autoconfiança profissional. Apesar de alguns estereótipos citados na literatura não aparecerem nos depoimentos (antipatia, mau humor e passividade), identificou-se que estes atravessam seu caminho quando são mencionadas expressões pejorativas, como a associação de bibliotecária a profissional sem ambições, com postura resistente a mudanças ou que se porta vulgarmente diante dos usuários.

Embora a maior parte desses comportamentos ditos femininos não façam parte do perfil atual das bibliotecárias, os posicionamentos delas não são suficientes para refutar a imagem negativa preconizada. Descrições estereotipadas e discriminatórias que demarcam características de gênero são atribuídas às bibliotecárias e influenciam na construção da imagem dessa profissional e de sua profissão. Buscou-se aprofundar o debate com as bibliotecárias, convidando-as a pensar em alternativas para interromper a estereotipização, e partindo-se do princípio de que somente com o aprofundamento da discussão será viável aferir como essas questões funcionam e como modificá-las.

 

REFERÊNCIAS

 

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FORREST, N. P. R. Gênero e relações de poder na Biblioteconomia: FCI e BCE: 1966 – 2014. 2014. Monografia (Graduação em Biblioteconomia) – Faculdade de Ciência da Informação, Universidade de Brasília, 2014.

 

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MARTUCCI, E. M. A feminização e a profissionalização do magistério e da Biblioteconomia: uma aproximação. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 225-244, jul./dez. 1996.

 

MORENO, J.; BASTOS, L. O estereótipo do bibliotecário no cinema. 2013. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA, DOCUMENTO E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 15., 2013, Florianópolis. Anais [...]  Florianópolis, SC: CBBD, 2013.

 

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