Os clássicos nas bibliotecas públicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul

 

The classics of literature in public libraries in Porto Alegre, Rio Grande do Sul

 

Clásicos en bibliotecas públicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul

 

 

Wagner Bernardes Zimmermann

                                                                         UFRGS

Brasil

 

Martha Bonotto

UFRGS

Brasil

 

 

 

Submetido em: 18/04/2021

Aceito em: 14/06/2021

Publicado em: 28/10/2021

 

Licença:

 

 

Autor para correspondência: Wagner Bernardes Zimmermann

Email: wagnerzimmermann@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6824-8673

 

 

 

 

Como citar este artigo:

 

ZIMMERMANN, Wagner Bernardes; BONOTTO, Martha. Os clássicos nas bibliotecas públicas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. REBECIN, São Paulo, v. 8, edição especial, p. 1-11, 2021. DOI:  10.24208/rebecin.v8i.242

RESUMO

 

Estudo de caso que examina o tratamento que os clássicos da literatura recebem nas bibliotecas públicas de Porto Alegre. Propõe definições de clássicos com base na teoria literária. Conceitua a biblioteca pública como instituição que deve prover gratuitamente cultura, educação, lazer e informação para a população. Relaciona o conceito de clássico com essas funções e afirma a necessidade de divulgação especial do cânone ocidental nessas instituições. Pesquisa a divulgação que os clássicos recebem nas bibliotecas públicas em Porto Alegre, por meio de entrevistas estruturadas com os bibliotecários-chefes e observações sistemáticas, individuais e não participantes dos espaços físicos e ambientes virtuais das unidades. Conclui que a divulgação da alta literatura pelas bibliotecas é muito limitada, devido a uma série de fatores, destacando-se a falta de investimentos do poder público por parte do Governo do Estado e a carência de conhecimento dos clássicos e do seu potencial junto ao público por parte dos responsáveis pelas unidades.

 

Palavras-Chave: Clássicos da literatura; Cânone ocidental; Bibliotecas públicas; Ação cultural.

 

ABSTRACT

 

Case study that examines the treatment that classics of literature receive in public libraries in Porto Alegre. It proposes definitions of classics based on literary theory. The study conceptualizes the public library as an institution that should provide culture, education, leisure and information for free. It relates the classics to these functions and asserts the need for special disclosure of the Western canon in these institutions. It examines the dissemination that the classics receive in public libraries in Porto Alegre, by means of structured interviews with their chief librarians and systematic, individual and non-participant observations of the physical spaces and virtual environments of the units. The study concludes that the dissemination of high literature by public libraries is very limited, due to lack of investments by the State Government and to lack of knowledge of the classics and their potential with the public on the part of those responsible for the information units.

 

Keywords: Literature classics; Western canon; Public libraries; Cultural action.

RESUMEN

Estudio de caso que examina el tratamiento que reciben los clásicos de la literatura en las bibliotecas públicas de Porto Alegre. Propone definiciones de clásicos basadas en la teoría literaria. Concibe a la biblioteca pública como una institución que debe brindar cultura, educación, esparcimiento e información a la población de manera gratuita. Relaciona el concepto de clásico con estas funciones y afirma la necesidad de una especial difusión del canon occidental en estas instituciones. Investiga la difusión que reciben los clásicos en las bibliotecas públicas de Porto Alegre, a través de entrevistas estructuradas con los bibliotecarios jefes y observaciones sistemáticas, individuales y no participantes de los espacios físicos y entornos virtuales de las unidades. Concluye que la difusión de alta literatura por parte de las bibliotecas es muy limitada, debido a una serie de factores, destacando la falta de inversiones del sector público por parte del Gobierno del Estado y el desconocimiento de los clásicos y su potencialidad con el público por parte de los responsables de las unidades.

Palabras clave: clásicos de la literatura; Canon occidental; Bibliotecas Públicas; Acción cultural.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A biblioteca pública, como instituição que deve fomentar o lazer e a educação para a população, bem como aproximar os indivíduos do patrimônio cultural da humanidade, é responsável por divulgar e possibilitar o contato dos seus usuários com os textos literários produzidos pelo homem. Mas será que essa missão é cumprida? Para contribuir para a resposta, foi tomada a decisão de investigar se algumas dessas instituições, as bibliotecas públicas sediadas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, estão promovendo de alguma forma os clássicos.

 

2 CLÁSSICOS E BIBLIOTECAS PÚBLICAS

 

Partindo de D’Onofrio (2002) e Todorov (2010), entendemos que a literatura é uma forma de arte que tem como característica a utilização especial da linguagem humana como meio de criação dos seus produtos culturais, visando proporcionar uma forma de conhecimento da realidade que difere dos outros saberes humanos.

A partir do estudo de Bloom (1995, 2003) e outros textos indicados a seguir, propomos que os clássicos são obras que: resistiram ao teste do tempo e continuam sendo lidas, podendo, contudo, ser obras atuais que têm sua qualidade reconhecida pelo meio literário (professores universitários, críticos e leitores); não se esgotam em uma leitura, revelando-se como livros inteiramente novos a cada leitura (ADLER; VAN DOREN, 2011); analisam com acuidade e nos permitem vivenciar intensamente determinados momentos da história (SCHWARTZ, 2012); exploram ao máximo as possibilidades do idioma e se tornam modelo de expressão escrita da língua em que foram compostos (ECO, 2003); influenciaram decisivamente a cultura ocidental como um todo, e não somente as artes (CALVINO, 1993); tecem um comentário original sobre determinado comportamento humano e se tornam referência sobre o mesmo (SAINTE-BEUVE, 2001) e, a partir desse comentário, nos permitem entender melhor a nós mesmos e aos outros (MACHADO, 2002); tornam-se a melhor companhia para a solidão natural do homem, possibilitando o encontro com personagens inesgotáveis e com interpretações do mundo fascinantes (BLOOM, 2001); permitem-nos vivenciar da forma mais intensa experiências diversas das nossas, o que nos proporciona uma compreensão maior do ser humano (TODOROV, 2010);  apesar de serem textos que desafiam o leitor, a beleza da obra faz com que transcendamos a nossa existência prosaica (BARTHES, 2008; BLOOM, 2001).  

Concordamos inteiramente com Calvino (1993), quando afirma que o clássico só cumpre as suas funções quando encontra um leitor interessado, que o leia com vontade e amor, e que é papel da escola (e por extensão por nós proposta, das bibliotecas) divulgá-los, para que o aluno possa ter oportunidades de encontrar os seus livros dentre aqueles que lhe foram oferecidos. 

Suaiden (1995) e Stumpf (1988) endossam a definição de biblioteca pública como aquela que é mantida pelo governo e visa atender a todos os membros da sociedade. Por sua vez, Almeida Junior (1997) considera que a biblioteca pública assumiu ao longo de sua história quatro funções: a educativa, a cultural, de lazer e a função informativa. Documentos como o Manifesto da IFLA/UNESCO sobre as bibliotecas públicas (INTERNATIONAL...,1994) e os princípios e diretrizes para as bibliotecas públicas elaborados pela Fundação Biblioteca Nacional (2000), também apresentam essas funções, que têm relação intrínseca com os clássicos. Para a função educacional, os clássicos têm relevância na medida em que são textos que proporcionam uma análise histórica e social da sociedade que descrevem, podendo, portanto, ser utilizados para a pesquisa escolar. A grande literatura tem a capacidade de propiciar uma imersão profunda por parte do leitor na realidade que descreve, semelhante ao que o melhor cinema ou os melhores jogos eletrônicos podem realizar, preenchendo, portanto, com maestria a função de lazer. Enquanto monumentos culturais que são, os clássicos também estão intrinsecamente relacionados à função cultural da biblioteca, dentro de sua missão de difundir a cultura de uma nação. 

 No contexto da difusão cultural, e para trazer o usuário para o ambiente da unidade de informação, muitas bibliotecas passaram a realizar o que se convencionou chamar de ação cultural. Nesse contexto, as ações recomendadas pela Fundação Biblioteca Nacional são as seguintes: “Conferências, debates, exposições (locais, itinerantes de outras entidades, retratando a herança cultural da comunidade), feiras culturais, maratonas culturais, mesas redondas, varal cultural.” (FUNDAÇÃO..., 2000, p. 101). Todas essas atividades (e muitas outras) podem ser utilizadas para a divulgação do cânone literário, porém, é necessário que o bibliotecário saiba como executá-las de forma a chamar a atenção do usuário e engajá-lo na leitura e nas discussões das obras.

 

3 METODOLOGIA

 

A pesquisa realizada foi exploratória e qualitativa e buscou, por meio de um estudo de caso, diagnosticar o tratamento dado aos clássicos pelas bibliotecas públicas, além de traçar um paralelo entre as ações da biblioteca e o ponto de vista pessoal do bibliotecário a respeito das grandes obras literárias. Os métodos de coletas de dados foram dois: entrevistas estruturadas com os bibliotecários-chefes e observações sistemáticas, individuais e não participantes dos espaços físicos e ambientes virtuais das bibliotecas.  

 

4 RESULTADOS

 

Após a coleta e análise dos dados, podemos afirmar que o tratamento dispensado aos clássicos pelas bibliotecas públicas de Porto Alegre é muito limitado. Apenas quatro das oito bibliotecas observadas realizam algum tipo de ação cultural que envolva o cânone. Muitas dessas atividades não são dedicadas exclusivamente aos grandes textos, incluindo também outros tipos de literatura; uma dessas quatro unidades de informação é especializada em literatura, porém, só efetua ações culturais se forem propostas externas. A principal razão para esse tratamento é a falta de investimento do Governo do Rio Grande do Sul, pois sete das oito bibliotecas são mantidas pela administração estadual. Essa negligência leva à falta de recursos humanos suficientes para a realização de atividades culturais, à ausência de espaço físico adequado para abrigar eventos, e à inexistência de recursos financeiros para arcar com as despesas necessárias à realização de ações. O investimento quase nulo em cultura por parte do Governo Estadual se reflete não só no baixíssimo número de funcionários atuando na maioria das bibliotecas, mas também na falta de qualificação desses profissionais para exercerem as funções às quais foram designados: apenas metade das bibliotecas analisadas possuíam bibliotecários. Embora os cursos superiores de Biblioteconomia venham dando pouca ênfase aos aspectos culturais da profissão, as graduações ainda fornecem um padrão mínimo de atuação profissional – que, no caso das bibliotecas públicas, inclui a necessidade de se realizar ações culturais para divulgar a literatura. Não é surpresa, portanto, que justamente as bibliotecas que possuíam bibliotecários foram aquelas que realizaram atividades que envolviam os clássicos. O tratamento dispensado aos clássicos é limitado também devido à sua pouca divulgação nos ambientes virtuais e nos espaços físicos das bibliotecas, que são pouco aproveitados, sendo utilizados basicamente para a divulgação de ações culturais – as quais podem ou não envolver o cânone.

A falta de iniciativa dos gestores decorre também da falta de leitura e do conhecimento do potencial dos clássicos. O relacionamento dos responsáveis pelas bibliotecas com o cânone é distante; muitos não têm o hábito de ler essas obras, principalmente as mais antigas, preferindo a literatura mais comercial, os best-sellers; como não leem as grandes obras, e parecem desconhecer a teoria da literatura, é natural que suas definições do cânone fossem limitadas, não contemplando vários conceitos trabalhados em nosso referencial teórico. O mínimo esperado seria que os cursos de Biblioteconomia e o Estado suprissem as lacunas de conhecimento sobre literatura que os gestores das bibliotecas públicas, em sua maioria, demonstraram possuir. Contudo, os profissionais também poderiam buscar por si mesmos cursos, palestras, seminários, bibliografias, dentre outros, que possam ajudá-los a suprir essa lacuna. Mais importante do que isso, porém, é ter a iniciativa de ler o maior número possível de clássicos.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É importante lembrar que, conforme já mencionamos neste trabalho, as bibliotecas públicas, aliadas às escolas públicas, são, em muitos casos, fontes indispensáveis para que a população tenha acesso ao lazer, à cultura, à educação e à informação de forma gratuita. Se os clássicos morrem nas prateleiras, se não são alvo de uma divulgação específica nessas unidades de informação, é muito provável que a maioria das pessoas não venha a conhecê-los e a desfrutar de todo o prazer e instrução que os mesmos podem proporcionar. Dessa forma, tais instituições acabam por não cumprir totalmente o seu papel, pois deixam de lado um patrimônio cultural inestimável, o qual pode ser de grande auxílio para que cumpram sua missão junto ao público. 

A presente pesquisa não só forneceu um diagnóstico da situação atual de divulgação dos clássicos nas bibliotecas públicas de Porto Alegre, mas também, com seu referencial teórico, definiu e defendeu a utilidade do cânone e a sua relação com esse tipo de biblioteca. Esperamos que esse esforço possa ser uma contribuição para aqueles que demonstraram desconhecer a teoria da literatura, os clássicos, e, no entanto, são responsáveis por divulgá-los: os responsáveis por essas unidades de informação. 

Esperamos ainda que os pesquisadores da Ciência da Informação voltem sua atenção para os temas que desenvolvemos neste trabalho e que são alvo de um número pequeno de estudos (Bibliotecas públicas, ação cultural, clássicos da literatura e sua relação com esse tipo de unidade de informação), principalmente se levarmos em conta a sua importância para a Biblioteconomia. 

Com um maior número de artigos, teses e grupos de discussão sobre esses temas, é provável que os bibliotecários, principalmente as gerações futuras, percebam a importância do debate que propomos, e possam ter uma postura mais ativa nas bibliotecas públicas, inclusive questionando as estruturas precárias que possuem e as atividades que poderiam ser desenvolvidas e não o são.  

Somado a isso, há ainda a pressão que todos, e não somente os órgãos relacionados à Biblioteconomia deveriam fazer sobre o Governo do Estado para que contrate mais profissionais qualificados e forneça mais recursos para que as bibliotecas públicas possam se encontrar em uma situação bem menos precária.

 

REFERÊNCIAS

 

ADLER, M.; VAN DOREN, C. Como ler livros: o guia clássico do leitor inteligente. São Paulo: É Realizações, 2011. 

 

BARTHES, R. O prazer do texto. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.  

 

BLOOM, H. O cânone ocidental. 3. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. 

 

BLOOM, H. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 

 

BLOOM, H. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.  

 

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.  

 

D’ONOFRIO, S. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 2002.  

 

ECO, U. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.  

 

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Biblioteca pública: princípios e diretrizes. Rio de Janeiro, 2000. 

 

INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS; UNESCO. Manifesto da IFLA/UNESCO sobre bibliotecas públicas. 1994.  Disponível em: http://archive.ifla.org/VII/s8/unesco/port.htm. Acesso em: 6 abr. 2015

 

MACHADO, A. M. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 

 

SAINTE-BEUVE, C. A. What is a classic? 2001. Disponível em: http://www.bartleby.com/32/202.html. Acesso em: 11 mar. 2015. 

 

SCHWARTZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.  

 

STUMPF, I. R. C. Estudo de comunidades visando à criação de bibliotecas. Revista de Biblioteconomia e Comunicação, Porto Alegre, v. 3, p. 17-24, jan./dez. 1988.  

 

SUAIDEN, E. Biblioteca pública e informação à comunidade. São Paulo: Global, 1995. 

 

TODOROV, T. A literatura em perigo. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010.